Excelentíssimos Senhores
Deputados da Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia
(CECDCT)
Como docentes da Área de Espanhol de Universidades
Federais e Institutos Federais atuantes no Estado do Rio Grande do Sul,
apoiados por nossas instituições de ensino, professores em formação,
professores em serviço e comunidade em geral de nossas respectivas regiões,
gostaríamos de manifestar, em primeiro lugar, nosso agradecimento a esta Casa
Legislativa que, generosamente, nos acolhe e acolhe as propostas que visam ao
desenvolvimento e à qualidade da Educação Pública no nosso Estado.
Isto posto, esclarecemos que nossa intenção, com o
presente documento, em virtude das recentes mudanças na legislação federal que
revogaram a obrigatoriedade da oferta de espanhol no Ensino Médio, é apresentar
os fatos históricos e os argumentos tendentes a uma reflexão sobre a
importância da manutenção do ensino de língua espanhola e de uma política que
promova o plurilinguismo nas escolas públicas.
Em fevereiro de 2017, com a aprovação da Lei 13.415/2017, advinda da Medida Provisória 746/2016,
passamos a vivenciar no Brasil e, de maneira particular, no nosso Estado, um
esvaziamento do espaço das línguas em geral e do espanhol de maneira específica
na escola pública. A referida lei, que altera a LDB, revogou a Lei 11.161/2005,
que dispunha sobre a oferta obrigatória do ensino de língua espanhola na
Educação Básica do país e impôs o ensino do inglês como a única língua
estrangeira a ser ensinada obrigatoriamente na escola. Recentemente, com a
última publicação da Base Nacional Comum Curricular, “documento de caráter
normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens
essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e
modalidades da Educação Básica” brasileira (MEC, 2017), verificamos que o
discurso da pluralidade linguística nas escolas foi também invisibilizado. Há
apenas espaço para o inglês.
Frente a este cenário de retrocesso no Ensino de
Línguas no Estado do Rio Grande do Sul, em especial nas escolas públicas -
pontuado também pelo Instituto Goethe, de Porto Alegre, a essa Casa
Legislativa, à Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia
(CECDCT)1 - queremos aqui destacar pontualmente os argumentos favoráveis à
manutenção da língua espanhola no quadro de disciplinas de oferta obrigatória,
na expectativa de que os dados aqui elencados sirvam de embasamento para
discussões mais amplas nesta casa, levando a uma possível reversão da atual
situação.
Em primeiro lugar, é importante
contextualizarmos o ensino de línguas estrangeiras no Brasil, lembrando que a
oferta dessas línguas no sistema escolar brasileiro sempre esteve afetada pelos
momentos políticos da nossa história, bem como da história mundial.
Na América do Sul, em especial, é conhecida a
postura “de costas para países vizinhos” que o Brasil manteve ao longo de
décadas, reforçando a imagem de uma ilha linguística. O fato de falar português
contribuiu, na ótica de certas políticas nacionalistas, para que o Brasil não
se integrasse à ideia de formação de uma identidade sul-americana. O mesmo,
lamentavelmente, ocorreu a países vizinhos que, assim como o Brasil, viveram
sob a regência de governos ditatoriais, cujo nacionalismo exacerbado, inclusive
em termos linguísticos, tornou esses países isolados uns em relação aos outros.
Com isso, por longo tempo, tanto o português quanto o espanhol como línguas
estrangeiras foram pouco difundidos e raramente ofertados nas escolas e mesmo
nos cursos livres.
No Brasil, tanto na Era Vargas quanto durante o
período da ditadura militar, houve o silenciamento das línguas, quer fossem
elas línguas nacionais, como as línguas indígenas, quer fossem línguas
estrangeiras, quer fossem línguas de herança (a língua dos imigrantes), embora
haja relatos de que Vargas e Perón teriam iniciado uma proposta de incluir
língua portuguesa nas escolas argentinas e espanhol nas escolas brasileiras. Na
era JK, também houve projeto de incluir o espanhol na escola pública, no
entanto, em virtude das fortes relações e dos interesses comerciais com os EUA,
o projeto não vingou.
Em termos de registro histórico, é importante ter
em conta que, ainda nos anos 90, a política do monolinguismo, que
historicamente dominou os países sul-americanos, deu lugar paulatinamente ao
reconhecimento das outras línguas, iniciando-se novas formas de organização de
sistemas escolares, considerando especificidades como a Educação Intercultural
Bilíngue Indígena, a inclusão de Libras e de outras línguas da região,
espanhol, português e, mais recentemente, o guarani nos sistemas educacionais
dos países, especialmente naqueles que são membros plenos do Mercosul. A
história das línguas no âmbito do Mercosul saiu então do binarismo português–espanhol
e pouco a pouco foi se ampliando para a oferta de mais línguas segundas e
estrangeiras na escola. Este quadro de ampliação e diversificação da oferta
responde tanto ao que os organismos internacionais em prol da cultura e do
respeito aos direitos civis apontam como também traz para nossa realidade a
necessidade de uma política pública de oferta plurilíngue na escola.
Até hoje, o Brasil não reconhece oficialmente suas
outras línguas nacionais, como é o caso das línguas indígenas, e só muito
recentemente passou a dar o devido reconhecimento à Libras. Esse longo período,
em que o português se tornou a única língua a ser aprendida e ensinada,
construiu uma cultura monolíngue, ou seja, para o brasileiro, saber e aprender
o português, a “única língua que se fala no país”, basta para que sejamos
sujeitos no mundo, do mundo e com o mundo. Esta cultura teve impacto direto no
ensino das línguas estrangeiras, contribuindo para sua pouca valorização na
escola de educação básica. Enquanto em vários países do mundo se ofertam
línguas estrangeiras desde os primeiros anos escolares no sistema público, o
Brasil só possibilita o contato do aluno com as línguas estrangeiras a partir
dos anos finais do ensino fundamental e, de modo predominante, a língua
inglesa. Situação que a nova lei perpetua. Para aclarar um pouco mais este
quadro, é significativo considerar que o Brasil ocupa, entre oitenta países, a
quadragésima primeira colocação no ranking mundial em termos de proficiência em
lingua estrangeira e, na América Latina, está atrás de países como Argentina,
República Dominicana e Costa Rica, sendo classificado com proficiência baixa.
Referente à inclusão do ensino de
espanhol no sistema escolar brasileiro, é importante considerar que ela ocorreu
em um contexto singular, a partir da lei 11.161 de 2005. Por um lado, a
inclusão do espanhol respondia aos protocolos de intenções e acordos no âmbito
do Mercosul, uma vez que português e espanhol são oficializadas como línguas do
bloco, a partir do Tratado de Assunção de 1991. Também respondia a uma série de
convênios de cooperação firmados entre Brasil e Espanha. Por outro lado,
decorre também de um momento no qual organismos internacionais como a ONU
publicam declarações dos direitos à diversidade cultural e dos direitos
linguísticos, muito em decorrência da escolha das diversas línguas oficiais e
de trabalho na Comunidade Europeia.
Como consequência direta da aprovação da lei 11.161
de 2005, houve um intenso investimento governamental na criação de novas
licenciaturas de língua espanhola pelo Brasil. No Estado do Rio Grande do Sul,
a saber, houve a criação de Universidades com Cursos de Letras Espanhol como o
da Unipampa e da Universidade Federal da Fronteira Sul, ambas na região da
fronteira. Os Institutos Federais também investiram na criação de tais cursos.
Com isso, ampliou-se consideravelmente o número de cursos e de professores.
Vários municípios também realizaram investimentos na área, contratando novos
professores e firmando parcerias com universidades para a criação de polos para
a oferta de licenciaturas em Letras/Espanhol na modalidade a distância pelo
Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB). O Rio Grande do Sul, por sua vez,
incorporou em seu quadro de pessoal centenas de professores de língua espanhola
nos últimos concursos públicos e contratos temporários. Mesmo escolas
particulares tiveram o interesse pela língua espanhola, aumentando sua oferta,
criando-se novos postos de trabalho e sendo estabelecidos convênios e
intercâmbios com escolas de países de língua espanhola. Para além disso e,
talvez, mais importante, por tratar-se de projetos de vida, houve um acréscimo
significativo de investimento pessoal na carreira de professor de espanhol -
investimentos estes que se frustram com a revogação da lei. Nossas universidades
ampliaram suas vagas, tanto na modalidade presencial como na educação a
distância, formando-se, nestes anos de vigor da lei, um elevado número de novos
profissionais que pautaram toda a sua formação e seus melhores esforços com
vistas a um mercado de trabalho que ora se vê reduzido ou mesmo, em muitos
lugares, extinto.
Temos, já, notícias concretas de escolas que, muito
embora tenham professores de espanhol em seu quadro, estão reduzindo
consideravelmente a carga horária da língua em favor do inglês, motivados pela
Lei 13.415/2017. Entre os vários relatos que temos colecionado, podemos mencionar, a
título de ilustração, que no sul do estado uma professora de língua espanhola
foi obrigada a decidir entre assumir a disciplina em várias escolas, o que
seria impraticável por conta dos múltiplos deslocamentos, ou dar aulas de
Artes, disciplina para a qual não tem formação. No extremo norte, no princípio
do ano, outra professora de espanhol foi surpreendida ao chegar à escola em que
trabalhava e ver toda a sua carga horária substituída pelo inglês, alegando-se
ter sido “ordem de cima”. E mais, descobriu que seria ela, sem qualquer
formação na língua inglesa, que deveria ministrar as aulas. Ao se recusar,
tentaram convencê-la a dar aulas de espanhol e registrar como inglês, proposta
carente de legalidade que foi imediatamente recusada. A pressão sobre a
professora foi tal que ela se exonerou e hoje atua em Santa Maria com ensino
infantil, que corresponde a sua segunda formação como pedagoga. Estes são apenas dois casos dos inúmeros que nos
chegaram até o momento, apesar da sinalização do Conselho Estadual de Educação
de que o espanhol não deveria ser retirado da grade antes da conclusão dos
debates sobre as OCNs (Parecer nº 02/2017 - Processo CEEd no 17/27.00/0000129-1).
Esclarecido todo o processo histórico e demonstrada
a situação em que atualmente nos encontramos, destacamos, ainda, que:
1)
O espanhol é língua oficial em 21 países.
2)
O espanhol é a segunda língua mais utilizada na
comunidade internacional.
3)
O espanhol é, em termos demográficos, a segunda
língua mais falada no
mundo.
4)
As línguas oficiais do Mercosul são o português, o
espanhol e o guarani.
5)
O Brasil faz fronteira com sete países que têm o
espanhol como língua oficial.
6)
O Estado do Rio Grande do Sul faz fronteira com
dois desses sete países.
7)
O Estado do Rio Grande do Sul tem
cerca de 27 cidades que fazem fronteira com o Uruguai e com a Argentina.
8)
Em se tratando de política
linguística e econômica, países desenvolvidos proporcionam oferta de espanhol em
suas redes de ensino porque compreendem suas fronteiras como espaço fluido.
Recentemente, a França abriu contratação de mil (1.000) vagas para professores
de espanhol, sem contar que países como os Estados Unidos, em algumas regiões,
podem ser visitados sem a necessidade do conhecimento do inglês. A língua
estrangeira mais falada nos Estados Unidos, por conta da crescente imigração e
da fronteira com o México, é o espanhol.
9)
A escola pública deve ser espaço
plural e, portanto, deveria ofertar não apenas uma, mas várias línguas
estrangeiras que levem em conta, principalmente, os contextos em que as escolas
estão inseridas.
10)
Negar o espanhol como língua
estrangeira na escola brasileira é ampliar a distância que existe entre “escola
de rico” e “escola de pobre”, afinal, os alunos que tiverem acesso a melhores
condições de ensino e à diversidade linguística terão, sem dúvida, mais
condições de concorrer a vagas nesse mercado de trabalho cada vez mais
concorrido, globalizado e intercultural.
Queremos deixar claro que somos favoráveis a uma
mudança significativa no sistema de ensino do país, a fim de torná-lo um espaço
cada vez mais propício à ampliação dos saberes dos alunos, cada vez mais digno
como espaço de trabalho para profissionais da educação, cada vez mais inclusivo
e plural. No entanto, defendemos que estas mudanças devem vir a partir de um
diálogo respeitoso com os profissionais da área, com os alunos, com todas as
comunidades envolvidas.
Diante de todo o exposto, conclamamos os deputados
dessa comissão e os demais deputados dessa Casa Legislativa a juntarem-se a nós
pela manutenção do espanhol na escola pública do Estado do Rio Grande do Sul,
pela manutenção da escola como esse espaço de pluralidade de vozes e de
encontro com o outro, a língua do outro, a cultura e a realidade do outro, o
que tende a garantir a construção de uma sociedade mais tolerante e inclusiva.
Manter a língua espanhola como
disciplina de oferta obrigatória na escola, seria um primeiro, ainda que
pequeno passo para garantir a pluralidade linguística na escola, o que é
defendida pelos grandes linguísticas de nosso nosso país e do mundo, para além
de qualquer ideologia.
Certos de
sua boa acolhida, subscrevemo-nos.
Atenciosamente,
Angelise Fagundes da Silva - Universidade Federal da
Fronteira Sul (UFFS - Campus Cerro
Largo)
Denise Perez Lacerda - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
Sul-rio-grandense (Ifsul - Campus CAVG)
Elton Vergara Nunes -
Universidade Federal de Pelotas (Ufpel)
Giane Rodrigues dos Santos - Universidade Federal
do Pampa (UNIPAMPA - Campus Jaguarão)
Glenda Heller Cáceres - Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS - Campus Bento Gonçalves)
Isaphi Marlene Jardim Alvarez - Universidade
Federal do Pampa (UNIPAMPA - Campus Bagé)
Joselma Noal - Universidade
Federal do Rio Grande (FURG)
Marcus
Vinicius Liessem Fontana - Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
Natalia
Labella-Sánchez - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Assinam abaixo os representantes presentes à
entrega deste documento em 27 de março de 2018.
Nota de Rodapé:
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